CIDADE

'Laene ComVida: - Quem é essa mulher?'

05/04/2024 13:00




 De dentro do carro eu a vejo se abaixando pra pegar um pé de meia preta, no vão entre o meio-fio e a rua. Rápido, bate a meia na mão, de um lado e de outro... pra que pegar só um pé? Às vezes não é pra calçar... enquanto me convenço do seu motivo, a mulher some da minha vista sem tempo de eu perceber onde guardara a meia sem par, tipo esportiva, masculina. Mais provável ter ido pra sacola de plástico amarela à mão do que para as mochilas carregadas nos ombros.

Quem é essa mulher que dribla minha deprê e me anima a sair do carro para continuar lhe vendo? Desaparece entre os passageiros que se acumulam na porta do ônibus. Não a vejo no enxame de gente, na faixa de pedestres, no outro lado da rua, no meio da praça... será que suas mochilas levam coisas catadas? 

Conheço pessoas que catam coisas nas ruas. Uma colega de sala tinha o costume de achar diariamente clipes no chão, mostrando-os como um tesouro nas aulas noturnas. Um vizinho gosta de recolher tudo de que “pode precisar um dia”. Na sua casa tem um quartinho lotado de quinquilharias.

 Eu não fico atrás. Já catei muita coisa por aí. Em BH, pedi aos jardineiros no bairro Sion pra jogar na minha Saveiro a enorme muda de palmeira areca dispensada pela moradora que a trocava por outra planta da moda. No mesmo bairro, levei duas espreguiçadeiras de madeira, que o condomínio substituía pelas de plástico, para o meu jardim.

 Dirigia pela cidade de olho espichado no que os outros deletavam como tralhas. Recuperei janelas, vasos, cadeiras, grades e salvei outras tantas plantas. Até que um dia descontrolei.

Fui encontrar um amigo que não via há muito tempo. Era pra ser uma happy hour. Varamos a madrugada, talvez até duas e tantas, tomamos três ou quatro garrafas de vinho e na saída, um pouco à frente, avistamos uma pilha de tijolos. Paramos a camionete, procuramos alguém, nada de obra ou vigia. Nem passou pela nossa embriaguez que seriam propriedade privada. Estavam mesmo na rua, não na calçada nem perto de tapume. No asfalto. Encher a caçamba com as lajotas foi pura diversão. Carregamos todas, mais de cem.

Pela manhã, não acredito no meu carro, lotado e arriado, encostando no chão ao descer a rampa da garagem. Ainda rindo, mas um pouco sem graça, resolvemos passar na tal rua pra nos desculparmos e devolver a futura parede. Nenhum sinal de obra, nada de caçamba, nem pistas de areia. Em tempos sem câmeras, ninguém achou ninguém. In vino insania.

Após décadas e três camionetes, minha alma catadora se acalmou. A última recolhida pública foi há anos, uma megabromélia no meio da pista na subida para Cunha, próximo de Parati. Paciente e rápida, Isabella a trouxe pra mim e ela tem-nos dado muitos filhotes que espalhamos pelas árvores. 

Ainda fico atenta às plantas pelo caminho, mas sem carro utilitário a atenção se distrai. Reciclar móveis não me anima mais. Entretanto, conservo o hábito de guardar caixinhas e alguns vidros. Sempre penso que podem virar embrulhos de presente ou conservas de pimenta...

Quem é essa mulher que numa aparição acorda minha memória nessa manhã de desânimo? Às vezes, a meia caíra da sacola e ela não cata nada. E nas mochilas carrega compras do mercado pra evitar tanto plástico... Quem sabe...

Quisera acreditar nisso, mas no momento em que ela me apareceu, senti sua vulnerabilidade. Não estava triste nem desesperada, mas firme, persistente. Estava sim à caça de coisas úteis.

A verdade é que há pessoas procurando ultilidades em caçambas e até latas de lixo pelas cidades. Roupas, brinquedos, alimentos. E a humanidade acumulando. Coleções de bonecas, casacos e relógios, guarda-roupa e closet, uma tv em cada cômodo das casas. Sobra tanto e um terço de toda a comida do planeta é jogada fora.

Bacana catar pra diminuir o lixo do mundo, reciclar, reaproveitar e fazer arte. E quem cata porque precisa, pouco ou nada tem? Quero reencontrar essa mulher que me tira do meu não-existir e me joga no pensar-agir.

 







UID:11429323/29/04/2024 17:26 | 0