Em Viçosa, outrora friorenta, hoje o calor não está nem pra capeta. Após 90 minutos de aula, gotículas na testa, o vento-bafo do ventilador para. A luz acaba. O conteúdo se derrete e os cérebros fritam. Dispenso a turma e vou almoçar.
Vou porque a razão achara melhor chegar mais cedo pra não encarar tanta gente. Engana-se o pensamento. O salão está repleto de quentura humana.
Marco meu lugar com o capacete, alcoolizo as mãos e entro no corredor do self-service.
“- Oiiii... vou comer esta saladinha...”,uma voz matraqueia. Primeiro com um interlocutor que avistara. Depois, sozinha, “meio que resmungando”.
“Jesus, Maria, José, ô energúmeno, não aprendeu nada?!”, vontade de interpelar o aerossol ambulante que sem noção continua a falar com a comida: “Oba, almôndega...”
Tudo nele me irrita. Sua falta de memória da pandemia viral e ainda mais essa alegria extrema num dia insuportavelmente quente. Passa por mim, engatando um pigarrinho-puxa-conversa. Ansioso, o cidadão não se cala. Ignoro-o. Se eu fosse dona do estabelecimento, pendurava uma faixa gigante bem na entrada: “Aqui você só abre a boca para comer. Sem conversa no self-service.”
Ao retornar ao meu lugar, quatro seres humanos ocupam toda a mesa.Meu capacete “arredado” no canto. Acho outra vaga à janela pra tentar alguma brisa e em meio a uma zoeira de falatório bem pior do que orquestra de cigarras (elas me tiram do sério), almoço. Rezando.
Sempre que estou em plena poluição sonora sem poder me afastar, eu rezo. Foram mais de dez Pais-nossos e perdi a conta das Ave-marias.
A fila do caixa está um alvoroço, é dia de evento. A falazada uniformizada retumba na acústica do restaurante. Camisetas e crachás em formigueiros, ou melhor, de cigarras aos bandos. Não suporto o burburinho. Pago amanhã. Meto a comanda no bolso, o capacete na cara e acelero de volta ao pavilhão das aulas. O vento entrando pela viseira aberta me refresca o humor. Qua-se.
“- Ô maluco!”, desta vez é meu grito que reverbera. Nem sei dizer o zeptosegundo em que aperto o freio, me reequilibro e avisto o galope do rapaz. Pra não perder o ônibus, ele nem pensa na perda da vida.
O susto me esquenta por dentro e alimenta a irritação. Hoje está sendo um “abençoado” (assim aprendi com Maria do Céu) dia.
A luz continua instável e sem internet não há trabalho. Poderia ler, mas sem ventilador a paciência é pouca. O mau humor permanece. Calorento, enjoado, bravo.
Braveza pela temperatura no chifre da lua que põe a vida em mal-estar, pelo homem que contamina a comida, pelo cara que quase me acidenta.
Sem luz e sem internet volto pra casa a 40 quilômetros por hora. Aqui a internet também titubeia, só no celular. Tela pequena não foi feita pra ler/redigir textos inteiros.
Pego um livro, deito na rede e decido pensar: minha irritação é com a minha raça, em especial gente estúpida. “Que não cuida de si nem do próximo.” Tem pressa e ganância de viver e não percebe que assim se aproxima a jato da morte.
Não é o planeta Terra que o ser humano está destruindo. É a si mesmo. Como disse a atriz @carolinaloback no Instagram: “Toda vez que alguém fala ‘vamos salvar o planeta Terra!’, fico imaginando a cara da Terra olhando pra pessoa: obrigada, mas vou ficar bem, (...) cai asteroide, explode vulcão, esquenta, esfria, entra espécie, sai espécie, mas eu sigo aqui, firme e forte há quatro bilhões e meio de anos. Agora, a sua espécie... eita! Tá um pouco prejudicada, hein? Também cês inventam cada uma, né? Tacam plástico na água, botam fogo na floresta, matam as outras espécies, se matam entre si, ai gente, que irritação! Mas não se preocupe não, que a hora que me der uns cinco minutos, eu faço assim: “Ó: aí acabou a era de vocês.”
Talvez seja mesmo o fim da nossa estirpe. Então, eu é que não vou me acabar, antes, no irritamento. Resolvo aproveitar o calor pra pôr umas roupas pra lavar.
Eis que vejo na capa da lavadora, sacudindo as asas molhadas, a borboleta saindo do casulo pra transmutar meu ser esquentado em suave sorriso. Brisei.