Difícil um ser humano que recuse brinde ou promoção. Ainda mais se tem no sangue libanês o gosto por descontos. É o meu caso. Mesmo sacando de marketing e estratégia de prospecção de cliente, escorreguei na armadilha “responda e ganhe”.
Após ouvir (sim, celulares nos escutam mesmo desligados) meu desejo de tirar o buço (nome feio, prefiro bigodinho), também herança da raça libanesa, o Instagram me entrega: “Sessão gratuita de laser em Viçosa, responda sim nos comentários.” Sim! Não penso. Peço mais uma pra Isabella. Depilações 0800 marcadas.
Xuxa nos recebe em poster de parede na recepção. Cabelo raspado, sorriso à Monalisa e os braços abertos sobre um céu azulzaço. “Todo mundo tá feliz?” Até o momento sim. A recepcionista nos oferece água geladinha, café, capuchino ou achocolatado. Somos encaminhadas à saleta onde a gerente Janaína (“Prazer, podem me chamar de Jana”), de jaleco branco e supermaquiada, nos encanta com sua fala paraibana. Dispara perguntas - “qual é sua idade, tem alergia, como se depila...” de um questionário sem fim.
“- Deixa-me ver...” ela se levanta num salto agulha, de lupa na mão tirada não sei de onde, pra me olhar de perto. De repente estou eu de calça arriada, coxas à mostra, com fome e sem graça.
“– Bonito o seu sotaque”, repito.
“– Para você eu recomendo o pacote completo, três prestações de...”
“– É de João Pessoa?”, balbucio sem assunto.
“– Sou não. Nasci em Catolé do Rocha, a cidade mais verde do sertão, terra de Chico César”, a gerente vai engatando um bom papo, com jeito de vendedora, das boas. Sua fala cantada não tem pressa de nos ganhar.
“– E a nossa sessão de graça?”, constrangida, custo a cobrar.
Sem piscar as taturanas pretas-cílios que abrem dois olhos verdes-esmeraldas, Jana jura que já ganhamos e a-cha (não sabe do meu ser “Salim saiu”) que me convence a marcar um pacote de dez sessões onde estaria incluída a gratuita.
Nessa altura de uma hora dentro da clínica, já sabemos que não haverá amostra grátis de nada. Nossa vontade é a de sumir dali. Decepção, uma certa raiva da “embromeixion” e fome. Mais de meio-dia.
Jana não desiste. Extremamente educada, nos pede licença para abrir o laptop mostrando o power point “As maravilhas da depilação a laser para mulheres e homens”. Troco um olhar com Isabella. Ligamos no automático, ouvidos de mercador, traspassamos a tela e pensamos longe.
O desejo de beleza é uma doideira. Faz cílios postiços virarem uniforme; saltos agulhas serem do dia. Gilete, cera, pomada, eletrólise e laser arrancarem nossos pelos. Pela beleza, homens depilam a barba, as pernas, o peito. Bonito é o que está na moda. E a moda, sem piedade, manda. A depilação é um dos seus mandamentos doloridos. Há piores.
A jovem inglesa Harnaam Kaur, que hoje desfila orgulhosa na Semana de Moda inglesa, sofreu anos de autoflagelações e desrespeitos em decorrência do crescimento descomunal de pelos no rosto, peito e braços causados pela Síndrome do Ovário Policístico. Seu penar só teve fim quando ela se converteu à religião Sikh, onde o corpo deve ser aceito como ele é e mulheres e homens são tratados igualmente. Religião, solidariedade dos maridos, terapia, coragem e apoio de amigas têm ajudado mulheres a largarem o barbeador, sentindo-se bonitas sem sofrimento.
“Quem quer ser bonita padece”: a máxima de antigamente, entretanto, ainda justifica decisões dolorosas e desconfortáveis. Da menina que tolera o frio no seu vestido de alça. Da moça que rala o tornozelo no apertado sapato novo. Da mulher que quase nem respira no jeans justo. Dos homens que puxam ferro nas academias. Quem não é fashion sofre. Baixa autoestima e bullying. Por destoar, ser diferente. Por não querer ou não conseguir se adequar ao padrão.
Saio da clínica quase desejando me despelar inteira. O sentimento de inadequação dura até eu passar a mão nos meus braços. E lembrar de onde eu vim: das montanhas, das especiarias, das mulheres de penugem do Líbano.